O tratamento dos pronomes

Me disseram ser de Nietzsche a frase "a verdade é insuportável ao homem". Autoria à parte, só posso concordar com a ideia. E atesto no dia a dia. A mentira é requisito necessário da boa convivência e escada para o sucesso, seja familiar, profissional, entre amigos ou qualquer outro. Sou convicto de que o processo civilizatório é assentado sobre essa etiqueta.

Imagine uma mãe. A sua mãe (ou você mesmo). Chegando do trabalho, exausta, irritada porque exausta, TPM, irritada porque TPM, dores pelo corpo, irritada porque dores pelo corpo, suportando viver... O filho pequeno se trepa nela, em êxtase, ocasionando-lhe uma odiosa sobrecarga, pisa no seu pé e fica puxando a camisa nova insistentemente, queixando-se de qualquer coisa... Ela deseja naquele momento não ter filho; que ele não existisse por pelo menos 2 horas de descanso... Mas a melhor mãe do mundo o abraça com carinho. E o filho terá um desenvolvimento saudável.

Uma amiga desabafa sobre o ex-namorado com todo o entusiasmo, em plena madrugada, já faz duas horas. Ela chora. Você não aguenta mais aquelas repetições. Você não aguenta mais aquelas repetições! A confidente permanece interagindo, demonstrando interesse. E serão amigas para sempre.

O seu patrão fede às vezes e trabalha ao seu lado. Ele tem mau hálito e não sabe contar piadas. Você está sempre bem humorada. Você ri e levanta a bola dele. Você conquistou promoção por merecimento.

Acho que os pronomes de tratamento fazem um excelente trabalho, tão necessário à ordem quanto o Código Penal. A impessoalidade facilita as boas relações e constrói uma harmonia necessária, mas nem sempre (ou quase nunca) genuína.

Será que a Vossa Excelência é uma pessoa excelente mesmo? O Excelentíssimo Governador é um exemplo de cidadão mais do que excelente, como se sugere? Ou isto só seria compreendido como uma profunda ironia?

Aquele reitor é tão magnífico quanto se ouve? O Meritíssimo Juiz se faz digno de tanto mérito? O Reverendíssimo abade merece tanta reverência assim? O Papa é de fato uma Santidade em pessoa? Dois anos de estudo e pesquisa em pós-graduação é capaz de formar um Mestre da ciência? Na verdade, rara são as vezes em que utilizamos um pronome de tratamento de peito aberto, com o coração ardendo dentro, cheio de orgulho... Venerar a babá, nem pensar!

Quando o cliente fala "doutor" (porque sou advogado), sempre me desconcentro por um segundo. Penso que não é comigo. É tão estranho quanto a gravata... Ainda prefiro o "Léo-léozo" de antigamente...

Um comentário:

  1. Desconcertante a verdade de que a mentira, na maioria das vezes garante a sobrevivência, a tranquilidade e até a saúde das pessoas. Dizer que o homem não suporta a verdade levo-o a questão da finitude. Melhor imaginar-se um super homem, indestrutível, pleno e potente. A vontade de poder. Não o poder de mandar, de fazer, mas de ser. Existir e comandar sua existência, eis a aberração de Nietzsche. Eis sua inconformidade.
    Belo texto.
    Lourdinha

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