A Capela de Santa Zita

Hoje me aconteceu um episódio marcante. Voltei à mini capela de Santa Zita, para uma missa em memória do pai de uma amiga. Tudo lá é pequeno. Até a desconhecida santa foi empregada doméstica, tornando o lugar ainda mais simples e, exatamente por isso, ainda mais grandioso. Para mim, aquele lugar é mágico. Até as pessoas - acredite - parece que vão com roupa de casa... Acho que essas coisas me ajudam a experimentar algo divino naquele lugar. Mas não só por isso.

Lá, pela primeira vez, fechei os olhos para rezar com vontade. Lá, pela primeira vez, me dirigi a Deus com uma sinceridade assustadora. Lá, pela primeira vez, tive medo de ser amado. Lá, pela primeira vez, chorei desconfiando de que Deus pudesse existir. Lá, pela primeira vez, a minha vida fez algum sentido. Lá, me pertenci cristão e me batizei aos 18 anos.

Olhei as colunas... Olhei o concreto... Olhei as cadeiras... Olhei as pessoas... Fazia dez anos, mas tudo me parecia familiar... Mesmo assim fiquei discreto, meio tímido, acoado. Não porque estivesse amedrontado, mas talvez porque estivesse concentrado em absorver tudo de novo... Sempre achei que o espírito das empregadas domésticas estava naquele lugar... e continuava estando. Parece que quando a gente se sente mais humano, é quando se sente mais divino. Essa retórica é bonita. Enquanto apenas retórica, é apenas bonita. No entanto, desfrutar desta simples realidade é diferente, não dá pra explicar, a retórica até ofende...

Me aguentei até quase o final, mas não resisti. Cumprimentei uma velha aleijada cadeirante, mal vestida; entusiasmada e sorridente. Cumprimentei outra velha doente, de bengala; e em paz. Abracei a freira. Nunca nos vimos, mas já nos conhecíamos. Quase fraca, quase surda, quase morta; quase divina. Sorrimos e choramos. Amei. Contemplei uma bebê quase dormindo e quase tudo ali me deixou feliz. Exceto algumas lembranças que a gente deixa esquecer...

Sei não... talvez Deus exista sim... Sei não...

Trans

Fiquei um pouco impressionado quando ouvi Thammy (filha de Gretchen) falar da alta ocorrência de suicídio entre os transexuais. É bom explicar: o gay é um homem, que quer ser homem, se sente homem e gosta de outros homens. A lésbica, da mesma forma: ela gosta de ser mulher, se vê mulher, e deseja mulheres. Mas o trans é diferente.

São homens (biológicos) que se percebem mulher e querem ser reconhecidas como tal. E vice-versa. Ou seja, a identidade do sexo não corresponde à do gênero. Muitos - não todos - se sentem inconformados com a própria anatomia sexual: não suportam o seu pênis, não toleram sua vagina, repudiam os próprios seios e por aí vai... Esse conflito torturante, indesejável e incontrolável, somado às pressões da família, às tradições, à exigência dos padrões, aos conceitos e pré-conceitos da sociedade, levam muitos a tentar diminuir o sofrimento, preferindo a morte... Parece que são muitos...

Pensando mais, acho que às vezes somos meio trans também... Porque essa não identificação consigo mesmo nos acompanha, aqui e acolá, em tantas situações, em maior ou menor grau... Quando permanecemos naquele trabalho humilhante, quando suportamos aquele marido violento. Quando fazemos o curso que não gostamos, quando investimos na carreira que sabemos que não tem nada a ver com a gente... Quando namoramos sem paixão, quando casamos sem amor... Quando não temos coragem de expressar nossas reais opiniões, por medo de não concordarem com elas, para não descobrirem quem somos de verdade... Às vezes a gente esconde tanto, que o que sobra para os outros já nem nos revela mais...

Tem gente que também se mata quando olha para si e se dá conta que encaminhou sua vida para lugares, pessoas, atividades e rotinas... tão fora de sua órbita, que, perdido no tempo e no espaço, já nem se reconhece mais...

E a vida passou...

E não passamos de uma vaga lembrança de nós mesmos...

E não há mais tempo (nem memória) pra descobrir quem a gente era...

E a gente, simplesmente... Não é mais.

Eu sigo meu caminho torto. Meio trans, meio eu. Me perdendo no outono, e me achando - de novo - no inverno.

Viva Rainha

Há uns dez anos não rezava a Salve Rainha. Quando precisei, havia esquecido. Só lembrava que era a mais difícil de todas e que me deu muito trabalho quando criança… Parece, inclusive, que fui reprovado no teste da Salve Rainha, na escola… Talvez por isso só tenha me batizado aos 18, quando já estava treinado nos decorebas da vida…

Salve Rainha é como José de Alencar: é belo, mas a criança não entende. Nem o adolescente. O jovem até entende, mas não gosta. José de Alencar é coisa para adultos (e nem todos), assim como a Salve Rainha. Apresentar José de Alencar aos moleques do ensino fundamental me parece tão irracional e desestimulante como ensinar Salve Rainha aos pimpolhos da 1ª comunhão…

Minha querida sobrinha de 13 anos, invejável devoradora de livros, se prejudicou na escola, porque não suportou Iracema e tirou nota baixa. Por Deus ela não leu. Por Deus ela não se desencantou com a literatura. José de Alencar não escreveu para ela, mas para homens, intelectuais e presunçosos, barbados e recalcados, do século XIX.

Quanto à Salve Rainha, por Deus que Maria é do povo. Por Deus que é a pobre refugiada de Nazaré, a negra de Aparecida, a índia de Guadalupe, a senhora dos roceiros de Fátima… Por Deus não nos desencantamos com a religião. Porque se dependêssemos da Salve Rainha, a devoção ficaria a cargo dos homens, intelectuais, recalcados e paramentados doutores da lei do Vaticano…

Depois de uma breve análise sintática e semântica da Salve Rainha, adaptei a Viva Rainha, mais ou menos assim:

Viva Rainha, Mãe doce, misericordiosa, cheia de vida e nossa esperança. Viva!
Somos os filhos de Eva, rejeitados, e imploramos à Senhora.
Pedimos, gemendo e chorando em lágrimas.
Então vamos, nossa advogada!
Olha pra a gente, com esses olhos misericordiosos
E, depois dessa separação, mostra Jesus, o bendito fruto do teu ventre!
Ó clemente, piedosa, doce e sempre virgem, Maria!
Reza por nós, santa mãe de Deus,
Pra que a gente receba a salvação que Cristo prometeu.
Amém.

Heraldo

Heraldo pra cá, Heraldo pra lá... Heraldo era um personagem frequente nas narrações do meu pai. Expressava admiração... Curioso foi saber recentemente que ele trabalha comigo, no andar de cima e desde sempre.

Apareci anunciando o parentesco, enchendo de saudade os olhos de um grande amigo... Conversamos e conversamos muito, recontando a história, que, desde os tempos de escola até o primeiro emprego, se confundiam.

Os jovens paraibanos aventureiros, recém diplomados, se dispuseram a desbravar o país, com todo o idealismo, oferecendo suas técnicas na construção da lendária Rodovia Transamazônica - como um recruta que vai para a guerra com patriótico e inconsequente entusiasmo. Mas o destino os desembarcou antes, em Teresina...

Estudaram juntos e juntos prestaram vestibular. Juntos cursaram a mesma faculdade e juntos também passaram no mesmo concurso: Heraldo em primeiro, meu pai em segundo. Por vários anos estiveram assim, lado a lado, numa parceria verdadeira de jovens e amigos. Descobriram a vida, cobriram as mulheres, foram felizes...

Mas as parcerias se desfazem quase sempre, não é mesmo? Os divórcios superam os casamentos nesse nosso mundo tão civilizado e evoluído, quanto confuso e contraditório... Sem olhar para trás, meu pai continuou sua aventura nas curvas da vida, por direções difíceis de explicar, em sentidos quase que opostos...

Percebo um certo lamento, um questionamento sobre a separação... Penso que este discreto sofrimento, esta carinhosa dúvida, seja de todos nós, inclusive do meu pai... Não sei se devo pedir desculpas...

Na memória, persistem as lembranças, que não servem apenas para ser lembradas, mas sentidas, e sentidas como se fossem hoje...