Em transição...

Os idosos lembram nostalgicamente das coisas como eram no seu tempo. O que se fazia, o que não se fazia, o que existia e o que não existia... Muita coisa caiu em desuso e muitas outras coisas ergueram-se em uso (para cair depois, mas só depois). Talvez por causa da velocidade tecnológica - que atropela a cronológica -, a minha geração dos trinta (um pouco mais ou um pouco menos) já começa a olhar para trás, sentindo-se ultrapassada...

Vivemos no antes e no depois desta muito bem definida "revolução da informação ou da comunicação". Experimentamos, no auge da nossa mocidade, o miolo destas tão significativas transformações, que marcarão para sempre a história e afetaram sensivelmente o dia-a-dia dos grupos humanos de todas as classes sociais - o cidadão da periferia frequenta a lan house e também adquiriu o seu smartphone. Mudaram-se os padrões, mudou-se o paradigma.

Não há referências nem modelos. Não somos os mesmos nem vivemos como os nossos pais (em certo sentido, é claro)... Inauguramos um novo jeito de fazer, de viver e de pensar, compulsoriamente afetados pelo turbilhão de informações eletrônicas e tecnologia galopante. Recebemos as novas influências, mas ainda fincamos a memória no passado da nossa velha infância. Somos ao mesmo tempo uma coisa e outra, correndo o risco de não ser nem uma coisa e nem outra... Ainda brincávamos nas ruas, ainda conversávamos com os vizinhos, ainda escrevíamos cartas...

Porém, deixo para o final aquilo que talvez me pareça mais perturbador. Vimos cair o muro de Berlim. Isto significa que ainda o vimos de pé. Ainda herdamos esta concepção dual das coisas, do capitalismo x socialismo, céu x inferno, nacional x internacional, homem x mulher, igual x diferente... Nossa mente ainda se vê agarrada nessas coisas, cujo conceito não traduz os novos paradigmas. Somos incapazes de pensar livremente para além de tudo isso...

Esta geração cumpriu com mérito o seu papel. Fez a transição e nada mais. As soluções, as saídas, os caminhos; estes ficarão para os nossos filhos...

Para não dizer que não falei com flores...

Recebemos uma plantinha, que fora distribuída a algumas pessoas da família. Era pequena, num vaso ainda menor, para decoração de mesa, talvez. Minha esposa comprometeu-se a regá-la, só que ao fazê-lo, conversava com o vegetal, oferecendo-lhe palavras carinhosas...

Muito esquisito. Fui ensinado a falar somente para quem tem ouvidos. Mentira!, porque nem com os animais estabeleci este tipo de interação. Me restringi a gente mesmo, e nem todas... "Dizem que ajuda", justificava ela, convidando-me para aquela cena bizarra... Balbuciei uma ou no máximo duas palavras quaisquer, por insistência, e me retraí, porque aquilo era ridículo.

A plantinha nos chegou murcha, meio morta (se é que isso existe). Mas começou a revigorar. A reagir e botar flores, que sinceramente não cabiam para tão poucos galhos... Alegrou a mesa, a sala, a casa. Alegrou as paredes e as pessoas... Alegrou o espírito. Creditou-se o sucesso ao diálogo, já que os outros regaram, mas só a nossa vingara àquela altura.

Pensei como a gente é seletivo e comedido para o afeto... A gente dá amor, como quem dá dinheiro: fazendo cálculos. Como se isso fosse diminuir a economia da nossa alma, para favorecer a de terceiros (como uma transferência bancária entre corações da mesma espécie)... A gente ama como investimento: para receber depois, uma herança, uma pensão, nem que seja uma caixa de remédio das mãos dos filhos crescidos...

Parece que amar não segue a lógica da matemática - ou talvez lógica nenhuma. Porque dar, neste caso, não revela subtração, mas multiplicação, como a das flores, como a do pão... É ver para crer!

As preocupações do dia-a-dia nos fizeram esquecer da plantinha, que murchou de novo - murchou que faz pena. Só que, desta vez, sou eu quem vai cuidar dela. Vou conversar, mas em segredo, porque preciso conservar a minha reputação racionalista.

Tatinga...

Me dou muito bem com minha sobrinha. Construímos uma amizade sincera desde os seus primeiros meses de vida. Acompanhei tudo, só não a dei de mamar... Ela sempre me recebe com euforia em sua casa e geralmente brincamos um pouco - de qualquer coisa, em qualquer lugar. Mal fala, mas já sabe habilidosamente o que quer (e especialmente o que não quer).

Numa dessas estávamos no sofá, meio confusos, sem criatividade, procurando o que fazer, até que eu executei a primeira ideia que me veio a cabeça: assoprar. Soprei os olhos dela (de leve), causando aquela inquietação natural, mas fazendo-a rir... Ela revidou. E ficamos assim, lá e lô.

Com o tempo, ela foi se irritando e pedindo pra parar, divertindo-me ainda mais. Claro que continuei, sendo que agora com mais entusiasmo. Ela foi meio que se desesperando, me empurrando, virando o meu rosto, dando tapas, jogando como pôde... A coisa começou a ficar sem graça, até que eu parei (um pouco constrangido).

A mãe e a tia cuidadosas, porém intrometidas, perguntaram o que havia ocorrido, quando ela ingenuamente esclareceu, para não deixar dúvidas:

   - Tatinga...

E abanou as narinas com sua mãozinha direita, reforçando com uma bela e convincente careta.