A recomendação sussurrada dos cuidadores era essa: "não chegue muito perto dela, porque ela é macumbeira"! Dizia-se isso com uma encenação que misturava preocupação, cuidado, temor, estranhamento, desconfiança, nojo..., perpassada por gestos e palavras. E tudo isso me fora transmitido por herança. Aquela senhora se desconfigurou completamente para mim. Perdera a sua humanidade. Tudo nela associava ao capeta. Tornou-se uma monstra, a bruxa do 71!
Procurava sinais do satanás e encontrava naturalmente: quando sorria e ria, quando falava e gritava, quando andava, trabalhava e especialmente quando cozinhava. Era gorda porque era mãe-de-santo, cobria a cabeça porque era mãe-de-santo. Imaginava ela permanentemente endemoniada, cuja vida e liberdade fora negociada ao diabo para sempre... Dialogava apenas o inevitável e a observava com a desconfiança de quem descobrira a identidade secreta de uma espiã infiltrada da KGB...
Dá pra imaginar que a construção desse personagem dificultou também a aproximação com o seu filho, prejudicando o entrosamento das brincadeiras. Talvez tenha sido maldoso com ele (eu era mais velho). Certamente fui...
Afastando-me mais do catolicismo (embora ainda conserve a formação cristã), passei a ver o candomblé como uma religião, nada mais, nada menos. Tratei de reconhecer a imensa e positiva contribuição do negro na formação do nosso povo e construção da nação. Se o trabalho dignifica o homem, há muito mais dignidade na senzala do que na casa grande, e é daquela que vem a nossa linhagem de nobreza... A fatia da cultura africana (incluindo nisso a religião) é hoje uma das coisas que mais me orgulha enquanto brasileiro. Acredite: somos muito mais africanos do que europeus, e isso não é difícil de verificar...
Passaram-se os anos, as décadas. Sem nunca imaginar, encontro "a macumbeira", hoje, querida senhora, no comércio. Havia esquecido dela. Volto alguns passos e me certifico. A vida me dava uma oportunidade de reconciliação... Destilei todo o meu amor em quinze minutos de íntima conversa e três ou quatro abraços calorosos de saudade... Atualizamos a nossa história de escolhas, alegrias, sofrimentos e perseverança. Nos despedimos sorrindo, amigos e amantes. Eu, com a alma redimida do pecado, com o espírito puro, vislumbrando adiante, a gloriosa salvação...
Aliás, acho que vou ter que usar um lenço na cabeça... Estão caindo cabelos no meu almoço... É uma questão de etiqueta.
Leonardo pertence à nobre estirpe dos escritores descritivos, de extraordinária capacidade de conectar o fato acontecido à palavra escrita, trazendo à percepção do leitor a realidade palpável, multidimensional e com todas as emoções vívidas. É coisa muito rara (e agradável) de se ver. Luis Lima.
ResponderExcluirObrigado, Luis! Um incentivo como esse só me estimula a escrever mais...
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