Quando deus se manifesta

Essa história deve ter acontecido há muito tempo, mas me lembro como se fosse 1º de julho de 2016. Naquela sexta-feira à tarde, fim de tarde, providencialmente a vida me reapresentara, anos depois, Fernando, no ponto de ônibus, de volta pra casa, para atualizarmos os papos. Entre deus e o diabo, ficamos com Nietzsche, mas depois ficamos com deus mesmo...

Dizia ele que deus se manifesta através da realidade, da forma como ela se apresenta. No entanto, muitas religiões atribuíam à deus, apenas uma parte da realidade. A outra parte que desagradava não seria portanto divina, mas reprovada como pecado. Se o mal, o ódio e a inveja não foram criados por deus, seria então obra de um outro criador?

Devaneios à parte, tomamos como exemplo as folhas diante dos nossos olhos, que quase me tocavam os ombros. Elas estavam feias, cheias de manchas escuras, ressecadas, meio queimadas e ásperas, estragando aquele verde naturalmente tão vistoso... Refletíamos que fomos formados para atribuir apenas o verde à deus, porque a parte ressecada a gente vê como um defeito, um erro ou um mal necessário. Porque não admirar também aquelas manchas como uma manifestação divina? E mais: porque o ressecado, escuro, áspero e queimado é feio?

Foi quando lembrei da sovaqueira e entendi o propósito daquele encontro. Era tão entusiasmante a conversa, que não havia dado conta de que estava triste e desconsolado. Contei que deus havia tristemente se manifestado até poucos minutos - na verdade ainda se manisfestara - através de uma realidade nua (nua não) e crua (crua sim), mas também ácida e desagradável.

Porque havia esquecido de pôr o desodorante naquela tarde... E, exatamente naquele tarde, haveria de pegar ônibus (o que é incomum), esperando-o ao sol do meio dia por quarenta e três minutos. Um sol tragicamente aberto e forte, sem nuvens ou sombra para amenizar os efeitos do esquecimento. Correria ainda por uns seis minutos, suando e cada vez mais suado, até a sala de aula pequena, apertada e com um ar condicionado bem precário...

Percebi a garfe nos primeiros minutos de clausura. Não apenas eu. Em um dia normal sairia imediatamente, alegando a morte do meu pai falecido em 2011. Mas aquele não era um dia normal. Fui obrigado a esperar a minha vez para apresentar não sei o quê, que era pra nota. Tentei não me mexer e permanecer com os braços colados ao corpo, mas era tarde. Não havia mais o que fazer, porque deus já havia se manifestado invisivelmente concreto para mim, os colegas e São Tomé. Restou-me perturbar a respiração dos alunos e professor por interminável hora e meia, até a vez e o fim da minha fala. Foi quando corri, envergonhadamente pensando que isso valeria uma crônica, se eu não tivesse modos...

Apesar de tudo, agradeci a Fernando pelas interpretações, e a deus por ter me ensinado - com caroços de milho, diga-se de passagem - a importância do desodorante. E, agora, é claro, com uma porção redobrada de aerosol! Afinal de contas, se deus pode se manifestar de várias formas, escolhamos a melhor: sem manchas, ressecamento e queimação, protegendo você com o cuidado e a naturalidade de uma folha sempre verde e vistosa...

Até com as pedras

Não poderia um animal amar. Pensar, ter sentimentos altruístas, possuir subjetividade... Aliás, somente o homem, porque "o homem é um animal racional". Portanto todos os outros, todos os outros seres viventes são irracionais, não passam de um adereço, um fantoche movido fisiologicamente pelos instintos... Na linguagem de hoje, um zumbi. Ou um automóvel, que, engatada a marcha ré, não tem como andar pra frente... Foi isso que a escola me ensinou: esse racionalismo limitado, essa ciência egocêntrica e petulante.

Amar um animal seria então ridículo! Coisa de gente limitada e carente, quase irracional, que quer se nivelar por baixo... Como me parecia ridículo chamar animais de filhos... Isso sinalizava para mim uma psicopatologia meio grave. Amor é troca, e não haveria troca sincera com um animal. Animal não tem sinceridade, não tem autonomia, mas instintos e condicionamentos. Condicionamentos condicionados pelo homem. O animal não se alegra simplesmente porque você chegou, mas porque vai receber comida. Esqueceu que, quando você chega, sempre dá comida? Tudo me parecia racionalmente bem explicado.

E, racionalmente, precisávamos de alguma coisa. Uma coisa para nos fazer companhia. Para fazer barulho quando estivéssemos sozinhos. Alguma coisa que nos desse responsabilidades, compromissos, algo que nos treinasse para alguém, que seria o futuro filho. Pois bem, compramos uma coisa, um shih tzu, e recebemos um amor... Amor gratuito... Como sou grato, quando a vida me desconstrói, para reconstruir de novo, modificado e melhor.

Já se foi um ano de vivo amor e dez meses de convivência... Amor maravilhosamente ridículo. Amor indescritivelmente recíproco. Amor mais sincero do que com a maioria dos homens. Amor inteligente e tolo, eufórico e preguiçoso, rebelde e obediente, alegre e triste, porque ele chora. De desgosto, de tédio, de bronca, de chuveiro... Às vezes eu engano ele, mas nem sempre. Ele me vence também. Ele é Eros e ele é alguém. Purinho. Todinho.

Nunca o bati, como minha mãe nunca me bateu. Choro em pensar que um dia não estará mais comigo (do jeito que a gente faz quando pensa no filho). E ainda assim choraria, pelo mesmo motivo, se ele vivesse duzentos anos... Acho que estou quase pronto para o segundo filho...

Amá-lo é humano; ser amado por ele é divino, porque o amor é verdadeiro até com as pedras, acredite. Até com as pedras...

E, sabe de uma coisa? Hoje ele vai comer leite moça.

Sermão

Controlar as emoções
Limitar a vaidade
Um'alma zen de verdade
Não cultivar ilusões
São lições que a vida ensina
Difícil é cumprir a rima
E dominar as paixões

O homem é bicho carente
É fraco, frágil e insano
Dá asas ao desengano
Não é mesmo inteligente
Se deixa levar por pouco
Não percebe que tá louco
E ainda fica contente

Essa vida é de lascar
Exige muito da gente
Desafia a nossa mente
Todo dia, sem cessar
E quem desiste e se cansa
E fica na vida mansa
Poderá se atrapalhar

Não é só cuidar do bolso
Da vida profissional
Se a nossa mente vai mal
Seja velho ou seja moço
O resto num anda direito
Não tem grana que dê jeito
Cê tá no fundo do poço!

Se apega com Jesus
Pensa sobre o que ele diz
Tu'alma cria raiz
Num novo caminho de luz
Ele sempre está contigo
Ele será teu amigo
Especialmente na cruz...

Meu amigo, meu irmão
Vou te dizer um negócio
Faça logo seu consórcio
Com as coisas do coração
Quem exala muito amor
Pra mulher, amigo ou quem for
Nunca terá solidão

Não vamos ter preconceito
Que maltrata muita gente
Aquele que é diferente
Também merece respeito
Se a gente parar, pensar
E de fato analisar:
Todo mundo tem seu jeito

Quem almeja a sanidade
Precisa se conhecer
Ser sincero pra valer
Encarar sua verdade
Esconder o que se sente
É covardia com a gente
É pura leviandade

Vou terminando o sermão
Que nem eu aguento mais
Pensa na vida, rapaz!
Se lembre: "nem só de pão..."
A mente também padece
A alma também carece
Que você estenda a mão.

Dona Maria

Soube, através de colegas do trabalho, que uma das ganhadoras do Prêmio Jabuti 2015 (o Oscar da literatura brasileira) morava em João Pessoa e se chamava Maria Valéria Rezende. Mas em João Pessoa? Por que não mora em São Paulo ou Rio de Janeiro? Por que a Paraíba? Sem conhecer sua obra, pesquisei sua vida na internet e vi que se tratava de uma biografia de ficção, difícil de acreditar...

Tramei esperá-la em frente ao seu prédio de luxo, na praia nobre do Cabo Branco, para, despretensiosamente, às seis da manhã ou cinco da tarde, encontrá-la por acaso nas caminhadas que fazem os intelectuais... E diria: "você não é a Maria Valéria Rezende? Gosto muito do seu trabalho, parabéns!". Quem sabe não ganharia cinco minutos de despretensiosa conversa, a fim de prefaciar meu futuro livro?

Como assim? Ela não mora na praia? Ela mora num bairro comum. Ela é freira e cuida de coisas domésticas num lugarzinho qualquer. Que falta de glamour...

Sem saber que eu planejava encontrá-la, uma nova professora, que se tornou uma nova amiga, falou sobre sua "prima" espontaneamente e, em poucos dias, estava eu nesse lugarzinho qualquer. Ainda nutri a esperança de que ela aparecesse com glamour, mas ela veio normal, e continuou normal... E conversamos.

E ouvi umas ficções, difíceis de acreditar: uma vida que tinha sentido, tinha ideais, tinha coragem, tinha vigor aos 70 anos (mais ou menos). Tinha beleza, tinha valor! E conheci outras valorosas normalidades, o André e a Regina. E conversamos sobre as nossas coisas, os contos, as crônicas, a poesia e a prosa... E tinha tanta beleza, e tinha tanto valor... E comemos um valoroso pastel normal, com recheio normal... A Regina não gosta de queijo coalho.

Aprendi que o valor do menino Jesus não são os reis, o ouro, o incenso e a mirra. O valor do Cristo é o Cristo. No meio dos cabritos, dos bezerros, no meio do mato, daquele cheiro de cocô...

E se eu perguntasse a Dona Maria qual o seu valor, ela responderia (ela seguramente responderia):
   - Ah, meu filho, o meu valor é o povo!
Os roceiros de Pilõezinhos, as putas de Guarabira, os índios da Amazônia...

Que me perdoem os Jabutis, mas o povo é fundamental.

Plantão Hardcore

Essa história é verdadeiríssima e ocorreu há muitos anos em João Pessoa. Uma médica de meia idade, divorciada e com a vida feita, cumpria sua jornada de plantões de uma forma no mínimo inusitada, surpreendente. Para aliviar o estresse (penso eu), a doutora levava para o trabalho umas fitas cassetes, das quais fazia uso nas oportunidades de ócio ou descanso, recreativamente.

Para cumprir sua programação, pedia as chaves ao funcionário da Central de Vídeos do hospital, e lá, divertia-se. Sendo que com filmes pornô, acredite. Fazia deste desejo um hábito, sem receios, como se estivesse assistindo Frank Sinatra ou o Balé Bolshoi. Bem diferente da mamãe na sua suíte, trancada a cadeado, às duas da madrugada, com os filhos dormindo no quarto do final do corredor, a inseguros mais de 15 metros de distância, correndo-se o risco de os meninos levantarem para ir ao banheiro ou tomar água, aumentando a aproximação... A doutora, não: gostava de locais públicos, por razões que só o Kid Bengala explica.

Da mesma forma que podemos escorregar na folha seca, cair com a cabeça numa pedra pontiaguda deixada na calçada e morrer de traumatismo craniano a caminho da padaria; a médica, em um de seus expedientes de intimidade, por um desígnio caprichoso do diabo e uma fatalidade inesperada da tecnologia, teve o seu vídeo hardcore retransmitido simultaneamente em todas as dezenas de televisores para as centenas de pessoas na maternidade: das enfermarias às enfermeiras; das salas de parto às de descanso, do pré natal ao puerpério, da recepção à UTI, do vigilante ao diretor, do papai recém nascido à vovó recém chegada...

Levaram uns cinco minutos para se darem conta de que não se tratava de um fato isolado. Levaram uns cinco minutos para saírem do constrangimento ao desespero. Levaram intermináveis cinco minutos para correrem até a Central de Vídeos, quando flagraram a doutora, inocente, desfrutando a olho nu daqueles malabarismos...

Você, o que faria? Sairia correndo eternamente, como o Forrest Gump, em direção às Ilhas Virgens? Fugiria naquele mesmo dia para as missões do Médico Sem Fronteiras na África Central? Ou (mais prático) se mataria ali mesmo, torcendo para não encontrar tão cedo com São Pedro ou o Senhor Jesus?

Conta a recontagem que ela reagiu com uma expansiva gargalhada, curtindo ser o "centro das atenções"... Há quem diga ainda que a protagonista adorava relembrar essa novela para outros colegas do trabalho, não-expectadores do episódio, sentindo-se uma estrela...