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Posso dizer que tive um amigo. Desses inesquecíveis. Aprendemos a ler juntos e, desde então, me hospedava em sua casa, conhecendo e me aproximando também da família. A irmã mais velha gostava de me ouvir assobiar “Patience”, dos Guns and Roses - eu contava oito anos, me enchia de vergonha, mas obedecia sob pressão... Havia um pastor alemão, robusto e bem nutrido. Recordo perfeitamente dele correndo atrás de mim (certamente para brincar) e eu apavorado, arrodeando o centro da sala, fugindo desesperadamente e divertindo a casa... Bons medos... Família numerosa, que sempre me acolheu com impressionante filial e fraternal respeito. A escada para os quartos me deixava ofegante.

Praticamos esporte juntos durante o colegial e seu pai nos deu aulas particulares de matemática, para o vestibular... A inteligência vinha de família. Nem a faculdade nos distanciou. Quando tudo estava monótono, éramos presenteados com a agradável surpresa da sua visita, contando suas aventuras e divertindo a casa... Contava uma história como ninguém. Ele mesmo era o protagonista dos seus enredos sempre bem humorados e otimistas, com uma particular pitada de criatividade. Peço que me empreste um pouco do seu talento, para nunca me faltar boas ideias e boas narrativas. Para que consiga fazer os outros sorrir também...

Enquanto militei na igreja católica, ele militou na política estudantil. Mantivemos uma certa reserva neste período, mas nunca nos afastamos. Percebi que a nossa dedicação era grande e semelhante, ideológica. Amigos: o que mais tinha. Impossível contabilizar. Acho que foi a coisa que mais valorizou na vida - nutria uma fidelidade admirável... Aprendeu logo cedo o que vale a pena. Seu coração era grande, ardente e sensível, e conservara uma pureza da infância, que não sei explicar. Era intenso. Beijava o irmão mais novo enlouquecidamente. E como explicou seu pai: “foi para uma viagem que não estava combinada”.

Ainda criança, já nos conhecíamos bastante, mas não o bastante. Faltava, como se diz por aí, conhecermo-nos “de trás pra frente”. Assim, brincávamos de soletrar nossos nomes completos no sentido inverso, para mais nunca esquecer. Pensava, com orgulho, que ninguém o conhecia como eu. Cauê era popular, “êuaC”, particular. Funcionava como um segredo entre nós. Uma senha de amizade. Um cadeado neste eterno coração de estudante... Só me amedrontava quando pronunciávamos o meu Dantas. Remetia a “satanás”! Suspeitava intimamente de que eu pudesse ser uma encomenda do diabo, principalmente porque não rezava antes de dormir...

Bigode Grosso

A cultura popular é uma coisa maravilhosa. Um fenômeno espontâneo, que brota não sei de onde, não sei de quem, emergindo valores e costumes de uma comunidade, e que, por causa desta identificação genuína, se irradia rapidamente. De certo modo, é uma manifestação que representa o povo ou parcela dele. Mas alguns amigos têm me ajudado a analisar as coisas com uma cabeça mais independente dos credos e das ideologias. Assim, nem tudo o que é popular deva ser necessariamente bom... Tenho evitado generalizações.

Gosto da liberdade e até mesmo da extravagância. Sinto-me intimamente seduzido por padrões que fogem ao que convencionamos por "politicamente correto" (se é que isso existe). Refiro-me a um modo de vida mais verdadeiro e menos neurótico, que não teme revelar aquela outra parte que a gente esconde, o nosso lado meio vagabundo. Por isso, consumo Gilberto Gil e Psirico, sem grandes conflitos. Tenho medo dos falsos moralismos, mais ainda dos moralistas.

O funk (não somente ele) descreve sem arrodeios os valores mais caros da nossa sociedade: o dinheiro, o sexo e o poder. Ideais perseguidos não apenas pela periferia, mas principalmente pelos mais abastardos, e também por eu e você. Ratifico Silvio Santos: quem não quer dinheiro? E digo mais: quem não gosta de sexo? Quem não quer ser autoridade ou referência naquilo que faz? (isto lhe confere poder). Neste sentido, o funk é fiel.

Mas minha crítica extrapola o funk e minha preocupação se dirige a esta filosofia reinante. A esta pirâmide invertida, que coloca o importante como "o mais importante" (isso faz toda a diferença), e que trata o essencial como suplemento... Quer ser careta? Fale de amor. Amor comprometido e responsável, que sofre e sofre com orgulho. Fale também em desfrutar da companhia das pessoas - de graça -, mais do que dos lugares e das rotas turísticas... Fale em ser uma pessoa boa, mais do que importante...

Lamento a receita da felicidade, cujos ingredientes são carros de luxo, piscina com mulheres para orgia, dinheiro caindo como folhas das árvores, ouro e drogas para potencializar a performance... Não imagino o que esperar de uma nação que cresce e se desenvolve nutrida por valores como estes... O pobre quer ser simplesmente rico, sem qualquer melhora, sem qualquer aprendizado, sem qualquer legalidade. O rico... Também.

Eu até que respeito o moço. Mas discordo de quase tudo o que ele diz...

O tratamento dos pronomes

Me disseram ser de Nietzsche a frase "a verdade é insuportável ao homem". Autoria à parte, só posso concordar com a ideia. E atesto no dia a dia. A mentira é requisito necessário da boa convivência e escada para o sucesso, seja familiar, profissional, entre amigos ou qualquer outro. Sou convicto de que o processo civilizatório é assentado sobre essa etiqueta.

Imagine uma mãe. A sua mãe (ou você mesmo). Chegando do trabalho, exausta, irritada porque exausta, TPM, irritada porque TPM, dores pelo corpo, irritada porque dores pelo corpo, suportando viver... O filho pequeno se trepa nela, em êxtase, ocasionando-lhe uma odiosa sobrecarga, pisa no seu pé e fica puxando a camisa nova insistentemente, queixando-se de qualquer coisa... Ela deseja naquele momento não ter filho; que ele não existisse por pelo menos 2 horas de descanso... Mas a melhor mãe do mundo o abraça com carinho. E o filho terá um desenvolvimento saudável.

Uma amiga desabafa sobre o ex-namorado com todo o entusiasmo, em plena madrugada, já faz duas horas. Ela chora. Você não aguenta mais aquelas repetições. Você não aguenta mais aquelas repetições! A confidente permanece interagindo, demonstrando interesse. E serão amigas para sempre.

O seu patrão fede às vezes e trabalha ao seu lado. Ele tem mau hálito e não sabe contar piadas. Você está sempre bem humorada. Você ri e levanta a bola dele. Você conquistou promoção por merecimento.

Acho que os pronomes de tratamento fazem um excelente trabalho, tão necessário à ordem quanto o Código Penal. A impessoalidade facilita as boas relações e constrói uma harmonia necessária, mas nem sempre (ou quase nunca) genuína.

Será que a Vossa Excelência é uma pessoa excelente mesmo? O Excelentíssimo Governador é um exemplo de cidadão mais do que excelente, como se sugere? Ou isto só seria compreendido como uma profunda ironia?

Aquele reitor é tão magnífico quanto se ouve? O Meritíssimo Juiz se faz digno de tanto mérito? O Reverendíssimo abade merece tanta reverência assim? O Papa é de fato uma Santidade em pessoa? Dois anos de estudo e pesquisa em pós-graduação é capaz de formar um Mestre da ciência? Na verdade, rara são as vezes em que utilizamos um pronome de tratamento de peito aberto, com o coração ardendo dentro, cheio de orgulho... Venerar a babá, nem pensar!

Quando o cliente fala "doutor" (porque sou advogado), sempre me desconcentro por um segundo. Penso que não é comigo. É tão estranho quanto a gravata... Ainda prefiro o "Léo-léozo" de antigamente...

A religião: a minha e a sua.

Depois de pensar durante anos e ter experimentado algumas realidades no passado, tenho atualmente admitido que religião não pode ser tratada como política partidária, time de futebol ou concorrência de mercado. Quero dizer que rivalidade não combina com espiritualidade... Este não deveria ser um espaço para paixões e fobias, mas para experiências serenas e elevadas, acima das picuinhas típicas da nossa realidade sensível. Religião não era para ser defendida, porque não deveria ser atacada.

Tenho dito que o problema da religião é a verdade. Por outro lado, sem verdade não há religião... Será que a verdade de tudo o que há - além do perceptível e do imaginado - consegue ser decodificada com toda a amplitude e mistério em forma de linguagem, escrita, sistematizada e racional? Muitas perdas nessa manufatura, muitos mistérios permanecerão mistério... Quando se estabelece uma verdade, ao mesmo tempo elegemos infinitas mentiras, ou seja, todo o resto! A partir daí, essa confusão e disputas, que torna a religião tão medíocre quanto repugnante...

Não quero relativizar tudo e acreditar em nada. A verdade sempre estará aí, nos convencendo das coisas. Acho que a verdade deveria ser mais sagrada do que a própria religião, e o mistério de uma poderia conter a arrogância da outra... Mas não há humildade na religião. Esta, por função, assume o pretensioso papel de dar respostas certas a enigmas ainda mais certos. E o religioso, por sua vez, acaba por revestir-se desse mesmo espírito...

Meu pai me disse que religião serve para tornar o homem melhor. De lá pra cá, tenho acreditado nisso (é uma questão de fé). Portanto, se a sua religiosidade lhe faz bem, se te ajuda a ser uma pessoa melhor - para si e para o mundo - você encontrou a religião certa, pode acreditar! Viver é uma oportunidade, e das melhores. Faça o melhor da vida, o melhor possível...

Axé! (pra quem é de axé).
Amém! (pra quem é de amém).

Mulher-testosterona

Seria incapaz de fazer sexo com uma mulher mais forte do que eu. Me sentiria numa situação desconfortável e a brochada é certa... Mesmo sendo meio fracote, gosto de perceber a minha força, por mais que não a utilize de fato. O envolvimento com uma mulher dessas me sugere subliminarmente uma inversão de papéis, que não casa com qualquer das minhas fantasias mais esdrúxulas...

A vida exige sempre mais da gente, não é mesmo? Delas, mais ainda. Não basta ter pernas trabalhadas, barriga saudável e peitos médios e bonitos... Tudo isso já reclama da sujeita muito tempo, muita energia e até sofrimento (tem gente que chora levantando uma maromba). O padrão de medidas cresceu tanto, que se tornou biologicamente impossível para a fêmea. Ao invés de criar consciência e recuar, encontraram uma brilhante saída, socorrendo-se do hormônio dos homens - testosterona na veia! -, aproximando-as muito mais do He-Man do que da She-Ra...

Os riscos para a saúde não me parece o melhor argumento para conter esta esquizofrenia narcisista coletiva. O valor maior é o estético, e o diálogo deve ocorrer também neste terreno. "Acho feio" convence muito mais do que "irritação", "agressividade", "colesterol", "trombose", "câncer", "morte"... Uma loucura!

Não quero me travestir de Arnaldo Jabor, mas prefiro a mulher-estrógeno, com toda a docilidade que em mim carece, com a aparente fragilidade que me conquista... Na minha conversa mais íntima, a fala grossa sou eu!