Em nome de Jesus!

Pensando nas experiências mais importantes da minha vida, não posso fugir do meu tempo de igreja. Durante seis anos, iniciando aos 17, participei de um grupo fechado, de jovens religiosos católicos, cuja vivência foi, sem medo de errar, exageradamente intensa. Somente hoje, depois de um longo período de "desintoxicação", superada a "crise de abstinência", sinto-me livre, leve e equilibrado para fazer uma oportuna e necessária crítica. Não gosto de postagens compridas, mas preciso ser extenso desta vez. Perdoe-me o leitor, pois será cansativo, talvez interessante.

Apresentaram Deus, no formato católico - com Jesus e Maria -, através de experiências fervorosas de oração, num confinamento espiritual de alguns dias. Revelaram o amor divino, incondicional, que abraça a nossa história por completo e se compadece especialmente nos momentos mais difíceis, pelos quais todos nós passamos. Propuseram o "nascimento" de uma nova criatura, deixando para trás as mágoas, a tristeza, a depressão e o sofrimento. Perdoando a todos (inclusive a si próprio) e recebendo o  perdão divino, fomos orientados a, doravante, corrigir nosso comportamento, renunciando ao que vem do mal, para alcançarmos uma vida de salvação. Esta é a boa síntese, que, conduzida com maturidade e sabedoria, produzirá bons frutos. Mas excesso de religião é como excesso de cachaça: mata e morre. Pelo menos adoece.

Nos ensinaram que somos "os escolhidos" de Deus, diferentes dos outros, e que por isso não deveríamos nos comportar como as outras pessoas. Eternamente gratos pelo amor e salvação quem vem de Cristo, seria necessário retribuí-lo com dedicação e sacrifício, pautando a nossa vida por hábitos radicalmente diferenciados, próprios dos filhos de Deus. Novelas não eram pra ser vistas; e músicas, só religiosas. Bares, shows e bebidas estariam terminantemente proibidos. Qualquer desejo era reprimido. Namoro, só de mãozinha e beijo moderado. Masturbação nem pensar e sexo só para depois do casamento. Palavrão era pecado e os antigos amigos seriam evitados: ou eles entram na igreja ou nós nos afastamos, para não sermos influenciados pelos corrompidos costumes... O mundo e as "coisas do mundo" eram duramente repudiados. Reduziam sua vida social àquele grupo de pessoas. Tudo se cumpria, mas às custas de considerável sofrimento e conflito psicológicos.

Construíram um rígido e assustador binômio de rivalidade "Deus vs. diabo", numa guerra espiritual sem fim. Éramos soldados dessa guerra, perseguidos pelo satanás a todo o momento. Precisávamos, assim, rezar permanentemente (mesmo que seja em pensamento), para afastar as forças do mal. A recomendação era para irmos à missa o máximo possível, de preferência todos os dias. Rezar um terço diariamente era obrigação, mas o ideal era o rosário. Além disso, deveríamos reservar o tempo de 1 hora por dia, para uma oração individual, seja aonde for... Quem não dispusesse desse tempo todo, rezava no meio da rua mesmo, balbuciando à vista das pessoas (vergonhoso). A moda era usar uma cruz de tradição exorcista, grande, grossa e pesada, de madeira e metal, pendurada no pescoço, pois esta representava um up grade espiritual, causando admiração nos irmãos.

Dá pra perceber que tudo isso, junto e misturado, era capaz de sufocar qualquer pessoa, por completo. E sufocava mesmo. Muitos pensavam em desistir, mas eram encorajados a continuar, pelos colegas que não estavam em crise naquele momento. Uns ajudavam os outros a suportarem aquele fardo desumano. Alguns tinham coragem de sair, mesmo convictos de que esta decisão significaria o seu passaporte para o inferno! Era nisso que acreditávamos, infelizmente. Ou seja: o camarada até conseguia pular fora, mas continuava preso pelas convicções ainda fortemente arraigadas em sua mente... Por isso era comum que os dissidentes se comportassem de maneira irresponsável e inconsequente consigo mesmos, demonstrando desprezo para com a própria vida, uma vez que já se sentiam condenados. Ouvi colegas dizerem à época: "De que adianta... Já estou no inferno mesmo...". O caro leitor não queira passar por isso. Operava-se lá aquilo que a gente chama de "lavagem cerebral".

Nas orações, pedíamos aos gritos para que Jesus afastasse os espíritos de satanás: espírito de ódio, inveja, mágoa e ressentimento; espírito de cansaço, desânimo, depressão e morte; espírito de orgia, fornicação, masturbação e homossexualismo; e por aí vai. Era uma verdeira histeria coletiva, administrada por um "líder espiritual" despreparado, mal resolvido e tão perdido, ou mais, que seus seguidores. Tudo era realizado "em nome de Jesus", cometendo-se um verdadeiro estelionato com a divindade.

Este trágico líder exercia forte influência, poder e controle sobre nós. Suas palavras eram palavras do Senhor, seus pensamentos eram revelações do Espírito Santo, suas regras eram encomendadas por Jesus. Assim, qualquer desobediência significaria rebeldia para com o próprio Deus, o que aumentava em escala exponencial sua autoridade, dificultando ainda mais a situação dos pobres servos...

Houve um tempo em que deveríamos nos confessar a ele, uma vez por mês. Desta forma, mantinha-se sempre atualizado sobre nossa vida e os problemas do grupo. Ele queria ouvir os segredos mais íntimos, do presente e, especialmente, do passado, realizando uma perniciosa catarse, às custas do constrangimento alheio. Quando encontrava resistência no coitado do discípulo - o que é perfeitamente natural e compreensível, para não dizer salutar -, apelava sempre para o místico, argumentando que o Espirito Santo o revelara, naquele instante, que ainda havia algo a dizer... Era batata: não tinha quem sustentasse. Este é um exemplo do que o Direito Penal denomina de "coação moral irresistível". Até intenções de namoro ele autorizava ou desaprovava... Não tinha pai, mãe, marido ou mulher: era ele quem dava a última palavra na nossa vida. Todos dependiam dele e ele se realizava com isso.

Entendo oportuno o relato, porque sei que muitos ainda vivem situações como essa, em tantos lugares, em tantas comunidades... Sensibilizo-me com todos! Que a minha triste experiência seja, para você, também um aprendizado. Tenho a exata compreensão do que significa esta revelação e, por isso, disponibilizo o espaço deste blog para o exercício de eventual direito de resposta por qualquer daqueles que tenham relação direita com essa história. Garanto que o desagravo será publicado em forma de postagem.

Por fim, dirijo a minha mais sincera prece a todos os fundamentalistas:

Que descubram a beleza que há na vida. E no mundo também;
Que a fé não lhes retire a capacidade de pensar;
Que a humanidade seja mais valorizada que a santidade;
Que o sexo seja simplesmente bom;
Que possam se descobrir, e se tolerar também.

Que as más experiências não estraguem a capacidade de confiar nas pessoas;
Que ninguém os façam desacreditar de si mesmos;
Que realizar valha mais do que sonhar;
Que o amor próprio esteja à frente do amor ao próximo;
Que possam amar e ser, ainda mais, amados.

Que os povos todos entendam
O que a sabedoria diz
Que entre a tristeza dos extremos
Com alegria encontraremos
Um meio termo feliz.

Amém.

9 comentários:

  1. Quem tem interesse e se emociona com o assunto, deveria ler "Feridos em nome de Deus", livro de uma jornalista cristã muito inteligente e crítica, chamada Marília de Camargo César, que não perdeu a ternura e sentibilidade.

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    1. Um livro que eu me interessei foi "Opus Dei, os bastidores". Acho que ainda vou ler esse danado...

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  2. Léo,

    Poucas vezes li um desabafo tão íntegro. Você relata uma experiência difícil e que somente com muito trabalho será esquecida. Acredito que agora começa a arrancar de dentro de si a decepção que substituiu a fé, a obediência cega sem reflexão. Iniciou sua catarse, vá em frente. Sem ódios, sem recalques. Apenas tecendo uma crítica construtiva de modo a continuar fazendo escolhas corretas. Um grande abraço.

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  3. Só quem passou por algo semelhante entende a importância de cada palavra escolhida para descrever um pouco desta experiência única. Gostei muito da forma como você abordou e, mais do que nunca, caminhemos juntos em busca deste "meio termo feliz". Amo você. Parabéns, bjs.

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  4. Gostaria de frisar ainda a importância de refletirmos sobre os frequentes abusos cometidos mundo afora "em nome de Jesus", e questioná-los para que isso não continue a tirar a paz de tantas pessoas que só buscam AMOR.

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  5. Leo'sou eu be. Vc tem uma habilidade na escrita que instiga as pessoas a lerem e' muitas vezes se idetificarem. Adorei o relato do 'monza'. Realmente em dez anos ou bem menos nos deparmos com eventos nada confortaveis,mas extremaente necessarios para o processo de áutoconhcimento. Continue assim: escritor com olhares nas coisas simples e que tanto seduz os eleitores porque de fato smks transportados a reviver nosso ponto de vista ou simplismente confirmar o mesmo em sua sutil observaçáo do diaa dia. Bethania.


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  6. Leo, essa experiência não é só sua...me vi nessas palavras.

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  7. Primo, eu peguei hoje seu blog para ler e nao consigo parar de ler suas postagens! Voce é simplesmente brilhante!!
    Livia Medeiros

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