A menina da escada rolante...

Ia ao banco, no Shopping, e peguei a escada rolante... Estava vazia, só eu descendo. Mas uma menina queria subir, lá em baixo, na contra-mão. Percebi, na verdade, que era apenas uma brincadeira de adolescente. Ficava caminhando sem progredir, como numa esteira... Sorria.

Era uma menina alegre e bonita. Tão nova e tão produzida: cabelo curto, envaidecidamente montado, e remontado com as pontas dos dedos a cada sete segundos; pó, maquiagem nos olhos e batom forte; a camisa eu não lembro, mas o short era jeans, resguardando somente o essencial e desfiado nas pontas; pernas brancas e vistosas...

Antecipando a passagem, ela abre caminho à distância, enquanto eu me aproximava...

Era um homem. Era. Um garoto. Não sei o que pensar...

Somos todos juízes, todos os dias, a cada nova situação que se nos apresenta. Qual será a justa sentença?

Tenho todo o direito de sentir qualquer coisa entre os extremos, por qualquer criatura... Isto é até incontrolável, cujas motivações são as mais obscuras... Relaxe.

O meu parâmetro (racional e não emocional) é a felicidade. Este patrimônio acima das leis, da cultura, dos modelos, cujo limite é a infelicidade alheia, o mal ao próximo...

Porque condenar uma jovem como essa à clausura de seu próprio quarto, diante de seu próprio espelho, se o mundo está aí fora, maravilhoso e espaçoso, para a gente ser e viver ao nosso estilo? Essa perturbação não afeta somente a ela... Esse temor não amedronta unicamente a ela... Essa coragem também nos desafia.

"É apenas uma ideia que existe na cabeça, e não tem a menor pretensão de convencer" (Lulu Santos).

Passei caladinho, disfarçando uma naturalidade inexistente, com um certo orgulho no meio do peito...

A fome...


Todos nós temos aquele episódio dramático que mais nos sensibiliza. Pode ser o câncer, crianças com câncer, aidéticos, hansenianos (leprosos), viciados da cracolândia, moradores de rua, sem terra, órfãos, velhinhos do asilo, e essa lista não acaba, porque o que mais se tem no meio do mundo é desgraça para a gente se importar... Pois bem, nesta relação interminável, o que mais me aflige é a fome. Falo da fome absoluta, da extrema pobreza, da miséria completa, e compreendo direitinho o despertar do meu interesse: as campanhas publicitárias da década de 80 em torno da África, que culminaram na clássica produção "We Are de World", liderada por Michel Jackson, com sua trupe de popstars...

Celebridades à parte, e sem estabelecer qualquer hierarquia no rol das mazelas e enfermidades, penso anestesiado como a espécie humana, tão evoluída e tão sofisticada, convive sem maiores problemas com espaços tão díspares, distribuídos no planeta, quando lembramos por exemplo do Haiti e Dubai. E é incrível como esta realidade (em alguma medida) se repete dentro de um mesmo país, em regiões distintas, cidades vizinhas, num mesmo bairro, na mesma avenida...

Dividimos isso todos os dias, com a naturalidade de quem vai para o trabalho...

Não acho que o Estado tenha obrigação de patrocinar a felicidade das pessoas, que devem ser donas de si. Mas nascer no meio da fome, da miséria, do completo abandono, sentenciado à morte e ao sofrimento, sem que se tenha cometido qualquer delito, não me parece nada aceitável... As nações são ilhas, quando se trata de solidariedade; as fronteiras são abismos, quando se trata de pobreza; porque, quando o assunto é riqueza, a lógica é exatamente oposta, até as últimas consequências...

Existe um limite a partir do qual a tolerância deixa de ser fashion, a retórica não convence e a filosofia não encanta... No meio da miséria, só o socorro interessa. O resto aborrece.

A medir pela propaganda, acho que a África superou seus problemas de inanição... Graças a Deus!

O Clube das Chaves

As fofoqueiras da calçada me contaram que o Clube das Chaves se passou em João Pessoa há muito tempo. A fundação do bairro do Miramar em 52 inaugurou também este espaço, que dava literalmente muito prazer para a socialite da capital. Era secreto e envolvia casais da mais alta classe...

Funcionava assim: eles entravam e as esposas iam logo ocupando os quartos, muitos quartos, uma em cada quarto. Ficavam lá trancadas. Depois embaralhavam-se as chaves e as distribuíam entre os maridos... Era como uma roleta russa do sexo. A formação dos casais durante a brincadeira não correspondia àquela abençoada nas igrejas sustentadas pelos dízimos dos nubentes, nem amplamente retratada pela imprensa, nas festas de gala (e bote gala nisso)...

Não critico o swing - que por sinal está super na moda -, mas a hipocrisia. Essa vida esquizofrênica, de encenar o politicamente correto (com o perdão da contradição) para a platéia, quando por atrás das colchias solta a franga, gozando justamente daquilo que aparenta resistir...

Por falar em político, tenho um caso interessante. Há um projeto de lei para regulamentar a profissão de prostituta: essa atividade tão rejeitada quanto consumida, tão descartada quanto comida... Nas audiências e sessões do Congresso, a ideia será duramente repudiada pelos mais nobres parlamentares, tenha certeza. Por outro lado, vi uma reportagem que tratava do sério problema, que é a carência de garotas de programa, frente a demanda dos grandes eventos de Brasília.

O exemplo citado foi a Marcha dos Prefeitos na Capital Federal. Um Deus no acuda! Tiveram que trazer prostitutas de Goiás e outros estados para dar conta da festa e alimentar a disposição dos mandatários e seus assessores, muitos assessores...

Quanto ao Clube das Chaves, ele se desmanchou e foi descoberto, por causa do jogo das probabilidades: o marido azarento sorteou a própria esposa (também azarenta)... Não aceitou por nada e fez escândalo!

Tem gente que não sabe jogar... Uma lástima...

LUTO

É com profunda resignação que informo a todos do meu falecimento, que ocorreu na madrugada de ontem, nas proximidades do Wi-Fi Bar e Restaurante. Ao sair deste ambiente, começo a sentir um mal súbito e uma sensação estranha na região do bolso frontal esquerdo, quando notei que o mesmo estava vazio. Entrei em pânico! Um sentimento de itálica solidão e sublinhado isolamento do mundo me arrebatou. Quiz desligar, mas fui carregado pelos amigos reais (sem graça e reais).

Levaram-me à Delegacia especializada, onde consultaram meu status e realizaram exames de imagem, com tecnologia Full HD. Esperamos completar o download clínico e imprimir o diagnóstico, nada surpreendente: "óbito em decorrência de roubo de Smartphone 3G, por volta das duas da manhã, provavelmente por ação de um hacker".

Aos que me curtiram durante toda essa linha do tempo, e àqueles que compartilharam dos links mais importantes da minha vida, desejo-lhes muito sucesso, revelado por meio de publicações e muitos, muitos comentários; seja no Face, WhatsApp, Instagram, Twitter e toda essa magnífica e perigosa rede social, que nos torna tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes...

Aos que ocultei amizades, minhas sinceras desculpas, por nunca tê-los visto antes, ou não confiar no seu perfil e não ter tido coragem de dizê-lo pessoalmente. Faz parte das relações virtuais, peço compreensão...

Aos que me negaram solicitações de amizade, meu perdão e minha compreensão também. Devo admitir que não fui tão agradável quanto imaginei que fosse...

Às efêmeras namoradas virtuais, o sexo - sem toque, sem cheiro, sem beijo, sem carne - deixará  saudades...

O legado às gerações futuras poderá ser facilmente visualizado através do meu canal no Youtube ou pesquisado no Google. Nossa conexão permanecerá pela eternidade...

Com as bênçãos do todo poderoso Bill Gates e de seu filho Steve Jobs, o salvador, me despeço deste mundo virtual para entrar na plataforma espiritual, onde não haverá virus, spams, nem e-mails indesejados; onde a bateria nunca se acaba.

Leonardo Galaxy (* 22/04/2010 + 18/10/2013).

Léo-Pidão

Os meus problemas de caráter existem desde pequeno, revelado especialmente na hora do lanche, que representa uma atraente (e tentadora) fatia da rotina escolar. Os salgados e refrigerantes circulando em massa pelos corredores, pátio e salas é de causar inveja em qualquer um que não dispunha deste cafuné nutricional, no meio das aulas. E comigo não foi diferente. Corrijo: comigo foi diferente sim, porque no meu caso faltara compostura.

Decidi acabar com esse sofrimento mirim e arranjei por conta própria uma solução. Me vali da aparente ingenuidade, carinha de anjo e do carisma que me acompanhara naquelas épocas, para educadamente, expirando desalento, pedir uma única "mordidinha" do salgado do amigo. O gole da Sukita ficava por conta do freguês. Foi um sucesso. Como conhecia muita gente, saciava-me além da conta, ao ponto de recusar generosidades!

Em pouco tempo, a fama do lucrativo empreendimento cresceu, e com ele a minha ganância. Passei então do uso ao abuso, até que um engraçadinho hiperativo (que existe em toda escola) me colocou o implacável apelido de "Léo-Pidão", o qual logo caiu na simpatia dos colegas, arruinando a minha carreira em dois ou três meses. Desconfio que esse cara deva trabalhar hoje na imprensa, ou não descobriu a sua vocação... Pensando melhor, analisando o contexto, o adúltero da trama era eu, e por isso a vida me cobrou uma pensão robusta, mas sem direito a advogado (registre-se)...

Resignado, baixei a cabeça, larguei o vício e restaurei a conduta civilizada, promovendo uma satisfatória ressocialização, porém a mancha do meu passado inglório permanecia nos antecedentes criminais. A memória curta do brasileiro não agiu para mim: o Pidão somente caiu em desuso no ano letivo seguinte, quando passei a consumir as delícias da cantina, sendo que desta vez, na qualidade de legítimo possuidor, como deve ser.

Ainda tive uma boa oportunidade de limpar a história recente e reverter os fatos em meu favor. Mas não soube aproveitar... Reativamente, os colegas passaram a pedir pedaços da minha comida - mais como teste de personalidade do que outra coisa -, ocasionando um certo alvoroço na minha psiquê. Dizem que quem passou fome permanecerá com esse temor para sempre. Até hoje consumo os biscoitos do mês inteiro nos primeiros dias da feira... A fartura me causa inquietude. Resultado é que não consegui ser nobre, escorregando sem remoço, com uma retórica nada louvável:

   - Se eu der um pedaço a vocês, nenhum de nós matará a fome, porque todos comerão pouco. Neste caso, comerei sozinho, porque assim, pelo menos alguém ficará satisfeito.
...
Concluindo este relato, acho que vou almoçar dois pastéis na bodega da esquina. Um de cada sabor, só por nostalgia... E que nenhum mendigo apareça para me pedir nada!

O professor

Quero aproveitar este dia simbólico que passou para dizer o que penso sobre o professor, a quem aprendi a simpatizar, admirar, venerar e até invejar. Hoje estabeleço uma relação meio sagrada com ele, exagerada mesmo, anormal. Revelarei o que acho deles, sem medo de errar - o que não me causaria qualquer constrangimento, desde quando me tornei um sem vergonha...

Entendo a educação como meio, e não um fim em si mesma. Ela está sempre direcionada para alguma coisa: desenvolvimento de habilidades e cognição, formação humana, qualificação profissional, etc. Está sempre a serviço, contribuindo para um determinado objetivo. É meio, mas não significa que seja pouco importante, uma vez que é meio indispensável, daí sua relevância. Vejo o docente assim.

O professor é um serviçal, que se coloca como instrumento na vida das pessoas, a quem chamam aluno. Trabalha para o crescimento dos outros, o desenvolvimento alheio, a conquista e realização dos sonhos de terceiros... Se volta inteiramente para fora, exercitando aquilo que se opõe ao egoísmo... Não realiza muita coisa sozinho, por ser acessório. O principal são os educandos, que constroem a sua história, desenvolvem suas potencialidades e decidem o seu caminho...

Talvez o professor seja como um bote que atravessa um rio ou um lago, levando pessoas de um lugar para outro. De um mundo conhecido, seguro e monótono, para outro novo, dinâmico e atraente, por ser misterioso... Nesta aventura, quem escolhe o percurso até o seu destino é o remador e não o bote. Para isso, devemos enfrentar com coragem e confiança a força oposta das águas e a fatigante distância do trajeto. Assim é o professor essa base (sem a qual nos afogamos), esse indispensável sustento, que nos dá o suporte necessário, mas que não pode (e nem consegue) assumir nosso papel principal de fazer nossas escolhas e trilhar nosso próprio caminho. No final, o mérito será sempre nosso, valentes marinheiros!

Fazendo outra analogia barata, o professor seria como um treinador de futebol, que não chuta, nem faz gol, que não defende nem ataca, apenas administra talentos. Que, para ser campeão, deve criar um espírito positivo de interação, cooperação e solidariedade, a fim de que se consiga extrair o melhor de cada um e o conjunto possa render o máximo possível. E as estrelas serão sempre nós jogadores!

É neste papel secundário, porém indispensável, que exergo o docente. Penso que o sucesso do ensino e aprendizagem será melhor quando ele se der conta de que é menos do que parece ser, e os estudantes, mais do que pensam que são... Em palavras fáceis e duras: o professor precisa baixar a bola, para elevar a bola dos alunos. Assim será um educador de verdade, assim será grande, imenso...

O professor não dever se apresentar para dar show e impressionar os que o ouvem, porque ele não é artista, a sala não é teatro, os alunos não são platéia e a aula não é espetáculo. O paradigma é inverso: o professor deve atuar para proporcionar o show dos alunos, desenvolvendo seus talentos, estimulando suas potencialidades, deixando brilhar suas estrelas...

Quando assisto à aula de um bestseller, saio admirado com a metragem da sua inteligência e, ao mesmo tempo, convicto do tamanho da minha burrice, agravando meu problema de baixa auto estima. Mas quando participo de um encontro, onde construímos conceitos, debatemos idéias, interagimos conteúdos, errando e acertando com a mesma naturalidade, saio entusiasmado, motivado, feliz...

Neste palco, o esforço do educador deve se direcionar para o Oscar de melhor ator coadjuvante (o que seria magnífico e digno de toda honra); porque o protagonismo, o destaque e a estrela maior, deixemos para os educandos (bom que fosse assim).

O professor é essa profissão de meio e sementes, cujo fim e frutos serão gloriosamente experimentados por aqueles que se enriqueceram do seu trabalho, carregando coisas boas e úteis para a felicidade na vida, a realização pessoal e o sucesso profissional. Se a educação é o caminho, o professor é a passagem, a parada obrigatória e fundamental na construção de um futuro melhor, e que seja para eu e tu, nós, vós e eles...

Aos professores do mundo inteiro, de todas as épocas e todos os estilos, meu louvor e minha reverência!

Cidade vazia

A cidade está vazia
Nenhuma inspiração pra minha poesia

Corpos presentes
Mentes doentes
Almas sem alegria

A cidade está vazia
Nenhuma inspiração pra minha poesia

Olhares abaixo
Só mais um capaxo
Desta desarmonia

A cidade está vazia
Nenhuma inspiração pra minha poesia
Povo sintético
Nem mais o boteco
Me traz alegrias

A cidade está vazia
Nenhuma inspiração pra minha poesia

Cadê o verde?
Só vejo parede
Isso dá agonia

A cidade está vazia
Nenhuma inspiração pra minha poesia

Não vejo a Princesa
De rara beleza
Desfilar Poesia

(Sra. Mari Ghella Rego).

A macumbeira

Há muito tempo, ainda criança, frequentava assiduamente uma casa da família, cuja empregada trabalhava por lá fazia um século... Trabalha até hoje, inclusive. Ela era uma autêntica representante da negritude, cuja africanidade estava (e está) estampada em todos os seus traços, sem escapar nenhum. Na síntese da minha querida avó quilombola, era uma "negra legítima". Penso que a sua ascendência não deva ter participado muito da miscigenação que caracterizou a nossa história. Era gorda e usava um lenço na cabeça...

A recomendação sussurrada dos cuidadores era essa: "não chegue muito perto dela, porque ela é macumbeira"! Dizia-se isso com uma encenação que misturava preocupação, cuidado, temor, estranhamento, desconfiança, nojo..., perpassada por gestos e palavras. E tudo isso me fora transmitido por herança. Aquela senhora se desconfigurou completamente para mim. Perdera a sua humanidade. Tudo nela associava ao capeta. Tornou-se uma monstra, a bruxa do 71!

Procurava sinais do satanás e encontrava naturalmente: quando sorria e ria, quando falava e gritava, quando andava, trabalhava e especialmente quando cozinhava. Era gorda porque era mãe-de-santo, cobria a cabeça porque era mãe-de-santo. Imaginava ela permanentemente endemoniada, cuja vida e liberdade fora negociada ao diabo para sempre... Dialogava apenas o inevitável e a observava com a desconfiança de quem descobrira a identidade secreta de uma espiã infiltrada da KGB...

Dá pra imaginar que a construção desse personagem dificultou também a aproximação com o seu filho, prejudicando o entrosamento das brincadeiras. Talvez tenha sido maldoso com ele (eu era mais velho). Certamente fui...

Afastando-me mais do catolicismo (embora ainda conserve a formação cristã), passei a ver o candomblé como uma religião, nada mais, nada menos. Tratei de reconhecer a imensa e positiva contribuição do negro na formação do nosso povo e construção da nação. Se o trabalho dignifica o homem, há muito mais dignidade na senzala do que na casa grande, e é daquela que vem a nossa linhagem de nobreza... A fatia da cultura africana (incluindo nisso a religião) é hoje uma das coisas que mais me orgulha enquanto brasileiro. Acredite: somos muito mais africanos do que europeus, e isso não é difícil de verificar...

Passaram-se os anos, as décadas. Sem nunca imaginar, encontro "a macumbeira", hoje, querida senhora, no comércio. Havia esquecido dela. Volto alguns passos e me certifico. A vida me dava uma oportunidade de reconciliação... Destilei todo o meu amor em quinze minutos de íntima conversa e três ou quatro abraços calorosos de saudade... Atualizamos a nossa história de escolhas, alegrias, sofrimentos e perseverança. Nos despedimos sorrindo, amigos e amantes. Eu, com a alma redimida do pecado, com o espírito puro, vislumbrando adiante, a gloriosa salvação...

Aliás, acho que vou ter que usar um lenço na cabeça... Estão caindo cabelos no meu almoço... É uma questão de etiqueta.

Paraíba masculina

Nesse mundo tem gente pra tudo, e ainda sobra um pra tocar gaita, conta o poeta Jessier Quirino. Pois bem, tem gente homem e gente macho, machô-chô. Nas fofocas de repartição pública (as quais sempre prestigio atentamente), ouvi histórias desse tipo de gente, que sintetizarei pra você. Não me conte nada em segredo, porque perderemos nossa amizade.

O macho do relato é democrático. Ele trabalha, porque "o trabalho dignifica o homem". Mas como nesta filosofia não se fala em mulher, ela não pode trabalhar. Ele é comerciante, usa a comunicação e lida diretamente com pessoas, principalmente mulheres, a quem dá especial atenção. A final, é uma questão de democracia, qualquer intelectual sabe disso. Se você discorda, é burro.

O macho é precavido. Preocupa-se com o corpo e faz academia regularmente. Mas ela não pode, porque já tem saúde, não há o que melhorar, está boa demais. E aquilo não é ambiente para ela. Tem muito homem mal intencionado, que pode desgraçar a nossa vida...

O macho é conectado. Ele tem Facebook, ela não. É perigoso. Muita gente ruim vai bisbilhotar a nossa intimidade, pondo em risco a integridade familiar... Gente mal amada. Ele só usa a rede profissionalmente, não devemos temer.

O macho sabe das coisas. Nos bares e restaurantes, somente ele pode ir ao banheiro, porque o homem urina mais, já que bebe cerveja. Um copo de suco ou água de coco não é motivo para tanto... Retocar a maquiagem se faz na cadeira mesmo, para isso existem os espelhinhos dentro da bolsa. Não inventa!

O macho se preocupa com o orçamento familiar. Vendeu os dois carros populares que possuíam (utilizados por ambos), para comprar um único de luxo (só para ele). É para economizar na gasolina. Pesa também a consciência ambiental, muito forte...

O macho é cuidadoso. Esta mesma dedicação dispensada à esposa, estendeu agora à amante. A outra trabalha no comércio e isso está o deixando pra não viver... Confidenciou aos amigos que é muito ciumento e que, se a esposa o trair, ele a mata.

Você deve está pensando em doença. É verdade: essa mulher tem problemas. E ele... é criminoso. Também...

Essa terra masculina tá precisando mesmo é de mulé-macho...

Novela 2 X 1 Futebol.

Parei de criticar novelas quando me dei conta do que é o futebol, cuja melhor definição é aquela dada pelas mulheres: vinte e duas pessoas correndo atrás de uma bola... É simples: o grupo que conseguir levar o brinquedinho circular até um determinado lugar, marca ponto (chamado gol). E, para ficar mais difícil, proibiram utilizar as mãos, sendo esta toda a graça do negócio. Fui obrigado a concordar...

Por outro lado, não suporto novela. Não vejo graça em acompanhar aquelas histórias de sempre: a mocinha e o mocinho, o vilão, as aventuras miraculosas, as mentiras... E tudo vai ganhando um sentido que não consigo compreender direito. Os programas de televisão, os colegas de trabalho, as redes sociais... todos começam a debater a trama e se envolver pateticamente. É mesmo perturbador...

Por que as pessoas nunca comem a comida que está na mesa, só beliscam? Por que as casas pobres são bem bacanas, perfeitamente decoradas? Por que as pessoas não arrotam, soltam pum ou falam palavrão, de vez em quando? Por que as roupas não estão um pouco amassadas ao final de um dia de trabalho? Por que elas acordam de batom, maquiagem, penteada e sem bafo? Por que só os fortes tiram a camisa? Por que as pessoas são ou perfeitas ou imprestáveis, caricatas e não normais? Chega a ser irritante...

Mas pense comigo, macho com H: existe coisa mais idiota do que discutir futebol? Apesar da fantasia, a novela fala da vida, levanta polêmicas, enfrenta tabus, constrói. Mas o futebol... Foi pênalti ou não? Foi frango ou não? O meu é melhor que o teu, o técnico é burro, o juiz tá roubando... Para pra pensar, robocop: isso é conversa de gente? Confesso meio constrangido que para mim faz todo o sentido e dá prazer. Perco a hora, desmarco compromissos... Nesta disputa, devo dizer, lamentavelmente, que perdi o jogo.

A novela me quebrou preconceitos. Me descobri normal, gente boa, que gosta de virtuosidades e banalidades, como qualquer um. É bom ser humano. E muito mais sentir-se humano! Hoje, aguardo silenciosamente o final da novela, esperando, democraticamente e com entusiasmo, o futebol... (tenho até dado umas risadas com o Félix, mas não conta pra ninguém).

Isso para mim é Amor à Vida.

Uma aula de perseverança

Este texto é uma colaboração do meu amigo Luís Henrique,
que, generosamente, enriquece este espaço
com o seu talento e suas reflexões.


Por que ficar confinado em uma sala de aula convencional, entediante e sem graça, se um espaço imenso, ao ar livre e com visão privilegiada da cidade e das montanhas que a limitam, nos espera? Foi esse o cenário escolhido pela professora e crianças da foto acima para exercitarem o que os especialistas pomposamente chamam de processo ensino-aprendizagem, embora persistam em mim sérias dúvidas quanto à motivação poética da escolha.

Alguns mais cautelosos poderiam indagar se os protagonistas da cena protegeram-se devidamente dos raios solares com o protetor adequado, tipo FPS 30 ou superior. Outros podem apontar o desconforto dos assentos ou até mesmo o calor que pode debilitar a saúde daquelas crianças sob um sol causticante.

É razoável questionar se não deveria haver um bebedouro com água geladinha, que cairia bem com esse calor. Igualmente, nenhum sinal de merenda escolar percebo. Nem preocupadas mães, em seus SUV modernos e importados, a esperar as crianças. Deve ser por causa do ambiente original e poético da foto. Não combina com essa mesmice.

Pode-se ainda argumentar que nem uma bola de futebol (ainda que tosca e desgastada pelo uso) há para entreter as crianças, que, atentas, postam-se comportadas, dividindo seus olhares e atenção com a professora e um quadro de frágil concepção, precário mesmo, insculpido diretamente na parede da edificação. Penso comigo mesmo que dali dificilmente sairá um Neymar.

Convenhamos, eu não me sentiria confortável ali, por mais bucólica que seja a paisagem que se descortina ao largo. O sol, a areia e o vento me incomodam desde já, mesmo estando aqui, do lado de fora da foto.

Não me recordo de quando criança ter-me submetido tão docilmente a uma situação desta. Mas não sou parâmetro para essa gente. Eles são bem mais nobres que eu, refém do meu comodismo urbano, burguês e dondoca.

Esses legítimos representantes dos povos morenos criados ao sol (resgatando aqui, de forma literal, o mestre Ariano Suassuna), têm no seu endereço genético os anticorpos, as imunidades, que lhes conferem uma resistência ímpar, que os faz ri, quando chorar seria mais óbvio e que vivem, quando sequer se supõe que poderiam aguentar.