Um suplício

Desisto. Lamento não conseguir convencê-lo de que tudo foi verdade, nessas proporções, sem arrodeios e sem enfeite. Não há fantasia aqui. Serei jornalístico.

Hora do rush, parada de ônibus, seis da noite. O primeiro passa alegando super lotação. O segundo, quem alega super lotação sou eu. No terceiro eu entro e levo de três a quatro minutos para chegar ao cobrador, tamanha a multidão. Estranhamente, o meio do ônibus estava relativamente vazio, um oco, comparado aos demais. Enfrento corajosamente o aperto e consigo chegar até lá para me aliviar. Puxo conversa com a pessoa mais próxima, quando de repente tudo pára... Uma confusão mental me arrebata por alguns segundos e eu não consigo voltar ao normal. O que estaria acontecendo?

Fui retomando os sentidos e, aos poucos, percebendo o que se passara. Duvidei, resisti e comprovei. Comprovei de novo. Não havia São Tomé que sustentasse. Aquele homem fedia. E fedia patologicamente.

Será mentira? Não é possível... Não pode ser real... Eu juro que pensei por um momento que estivesse em um filme de ficção, uma comédia. Olhei as pessoas pra pedir socorro quando notei o estado de emergência. Todos se entreolhavam manifestando as mais variadas reações: desespero, decepção, rendição... Uns riam pra não chorar e outros choravam mesmo... Um suplício.

Conversávamos disfarçadamente, desabafando o sofrimento, mas éramos interrompidos de súbito pela "inhaca" assustadora, como num soluço... Um estudante avaliou que pior era nas aulas de anatomia. Isso mesmo: foi comparado a um cadáver. Era intenso, marcante, era ácido. Entendi o oco, o vazio. De repente, 2/3 da população transeunte só falava no monstro... Uma velhinha rezava pra Jesus ter misericórdia dele e eu pedindo a sua condenação...

Ele insistia em conversar comigo, já que minha simpatia havia lhe dado cabimento de início. Falava da ex-mulher e eu com pena da mulher... Falava do puteiro e eu com pena das raparigas... Com um pouco, ele inventou de se sentar ao lado de uma senhora, cuja narina alinhava-se com o suvaco. Essa foi imperdoável.

Tomado de profunda compaixão, antes de sair, profetizei com fé, dizendo a ela:

   - Jesus há de te recompensar comadre... Jesus há de te recompensar!

Isso

Existe uma coisa dentro da gente que não se vende e não se compra. Não sei o nome disso.
É algum sentimento, alguma sensação, algum entusiasmo, alguma emoção...
Que nos faz reconhecer que a vida é fascinante, maravilhosa, que a felicidade existe e vale a pena.

Quero dizer que isso existe. Está aí. Mas parece meio escondido, perdido em algum lugar...
Descobrir isso passa, necessariamente, por descobrir a nós mesmos. Nos reconhecer naquilo que somos, fazemos ou deixamos de fazer. Descobrir nosso lugar no mundo e na própria vida.
Ter a coragem de ser aquilo que somos de verdade.

Isso explode, isso grita, isso nos sacode por dentro e nos faz viver intensamente.
Quem achou isso ainda lhe falta a coragem de viver.
Quem não achou, é um caminho, uma descoberta, uma vida...

Posso dizer que isso existe.
É real, mesmo que não seja concreto. Se concretiza em nós.
Às vezes tá tão longe, longe mesmo... Às vezes bem perto.
Não sei se está sempre ao nosso alcance. Pode ser inatingível para mim ou para você...
Pode ser que nunca o vejamos, que nunca o reconheçamos...

Não sei o que é isso. Eu sei que isso é. É.

Gostaria de fazer muito por você, mas só posso fazer isso. Somente isso.

A fusão dos ritmos

O papo é sobre música popular brasileira. Não me refiro a Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan, Ana Carolina, Maria Gadú, etc. Tô falando do que é "popular", que está na boca do povo, martelando o nosso juízo: Gustavo Lima, Michel Teló, Aviões do Forró, Sorriso Maroto, Calypso, Parangolé... Essas coisas.

Tenho percebido a ocorrência de um fenômeno nas músicas populares do Brasil: estão virando uma coisa só. E esta fusão se dá em três aspectos. O ritmo está evoluindo para o "batidão universal", de percussão marcante. As letras falam das baladas, mulheres, bebidas, farras, etc. E a dança é aquele reboladozinho unissex, de sugestão erótica, que você conhece.

Para isso, neste nosso país heterogêneo, as diferentes culturas musicais tradicionais tiveram que sofrer, imperiosamente, modificações e adaptações. O sertanejo de raiz, do Brasil central, tornou-se universitário. O forro nordestino, virou eletrônico e também universitário. A música afro e o samba de roda da Bahia se juntaram para fazer a denominada swingueira (essa eu curto mesmo). O samba do sudeste deu uma mudada para o formato daquelas bandas de pagode. Os ritmos do norte também seguiram as novas tendências.

Tentando comprovar minha argumentação, selecionei alguns vídeos de bandas de estilos diferentes, para você vê se não parece a mesma coisa... Se doer, assista somente o primeiro minuto e dê sua opinião:




Em nome de Jesus!

Pensando nas experiências mais importantes da minha vida, não posso fugir do meu tempo de igreja. Durante seis anos, iniciando aos 17, participei de um grupo fechado, de jovens religiosos católicos, cuja vivência foi, sem medo de errar, exageradamente intensa. Somente hoje, depois de um longo período de "desintoxicação", superada a "crise de abstinência", sinto-me livre, leve e equilibrado para fazer uma oportuna e necessária crítica. Não gosto de postagens compridas, mas preciso ser extenso desta vez. Perdoe-me o leitor, pois será cansativo, talvez interessante.

Apresentaram Deus, no formato católico - com Jesus e Maria -, através de experiências fervorosas de oração, num confinamento espiritual de alguns dias. Revelaram o amor divino, incondicional, que abraça a nossa história por completo e se compadece especialmente nos momentos mais difíceis, pelos quais todos nós passamos. Propuseram o "nascimento" de uma nova criatura, deixando para trás as mágoas, a tristeza, a depressão e o sofrimento. Perdoando a todos (inclusive a si próprio) e recebendo o  perdão divino, fomos orientados a, doravante, corrigir nosso comportamento, renunciando ao que vem do mal, para alcançarmos uma vida de salvação. Esta é a boa síntese, que, conduzida com maturidade e sabedoria, produzirá bons frutos. Mas excesso de religião é como excesso de cachaça: mata e morre. Pelo menos adoece.

Nos ensinaram que somos "os escolhidos" de Deus, diferentes dos outros, e que por isso não deveríamos nos comportar como as outras pessoas. Eternamente gratos pelo amor e salvação quem vem de Cristo, seria necessário retribuí-lo com dedicação e sacrifício, pautando a nossa vida por hábitos radicalmente diferenciados, próprios dos filhos de Deus. Novelas não eram pra ser vistas; e músicas, só religiosas. Bares, shows e bebidas estariam terminantemente proibidos. Qualquer desejo era reprimido. Namoro, só de mãozinha e beijo moderado. Masturbação nem pensar e sexo só para depois do casamento. Palavrão era pecado e os antigos amigos seriam evitados: ou eles entram na igreja ou nós nos afastamos, para não sermos influenciados pelos corrompidos costumes... O mundo e as "coisas do mundo" eram duramente repudiados. Reduziam sua vida social àquele grupo de pessoas. Tudo se cumpria, mas às custas de considerável sofrimento e conflito psicológicos.

Construíram um rígido e assustador binômio de rivalidade "Deus vs. diabo", numa guerra espiritual sem fim. Éramos soldados dessa guerra, perseguidos pelo satanás a todo o momento. Precisávamos, assim, rezar permanentemente (mesmo que seja em pensamento), para afastar as forças do mal. A recomendação era para irmos à missa o máximo possível, de preferência todos os dias. Rezar um terço diariamente era obrigação, mas o ideal era o rosário. Além disso, deveríamos reservar o tempo de 1 hora por dia, para uma oração individual, seja aonde for... Quem não dispusesse desse tempo todo, rezava no meio da rua mesmo, balbuciando à vista das pessoas (vergonhoso). A moda era usar uma cruz de tradição exorcista, grande, grossa e pesada, de madeira e metal, pendurada no pescoço, pois esta representava um up grade espiritual, causando admiração nos irmãos.

Dá pra perceber que tudo isso, junto e misturado, era capaz de sufocar qualquer pessoa, por completo. E sufocava mesmo. Muitos pensavam em desistir, mas eram encorajados a continuar, pelos colegas que não estavam em crise naquele momento. Uns ajudavam os outros a suportarem aquele fardo desumano. Alguns tinham coragem de sair, mesmo convictos de que esta decisão significaria o seu passaporte para o inferno! Era nisso que acreditávamos, infelizmente. Ou seja: o camarada até conseguia pular fora, mas continuava preso pelas convicções ainda fortemente arraigadas em sua mente... Por isso era comum que os dissidentes se comportassem de maneira irresponsável e inconsequente consigo mesmos, demonstrando desprezo para com a própria vida, uma vez que já se sentiam condenados. Ouvi colegas dizerem à época: "De que adianta... Já estou no inferno mesmo...". O caro leitor não queira passar por isso. Operava-se lá aquilo que a gente chama de "lavagem cerebral".

Nas orações, pedíamos aos gritos para que Jesus afastasse os espíritos de satanás: espírito de ódio, inveja, mágoa e ressentimento; espírito de cansaço, desânimo, depressão e morte; espírito de orgia, fornicação, masturbação e homossexualismo; e por aí vai. Era uma verdeira histeria coletiva, administrada por um "líder espiritual" despreparado, mal resolvido e tão perdido, ou mais, que seus seguidores. Tudo era realizado "em nome de Jesus", cometendo-se um verdadeiro estelionato com a divindade.

Este trágico líder exercia forte influência, poder e controle sobre nós. Suas palavras eram palavras do Senhor, seus pensamentos eram revelações do Espírito Santo, suas regras eram encomendadas por Jesus. Assim, qualquer desobediência significaria rebeldia para com o próprio Deus, o que aumentava em escala exponencial sua autoridade, dificultando ainda mais a situação dos pobres servos...

Houve um tempo em que deveríamos nos confessar a ele, uma vez por mês. Desta forma, mantinha-se sempre atualizado sobre nossa vida e os problemas do grupo. Ele queria ouvir os segredos mais íntimos, do presente e, especialmente, do passado, realizando uma perniciosa catarse, às custas do constrangimento alheio. Quando encontrava resistência no coitado do discípulo - o que é perfeitamente natural e compreensível, para não dizer salutar -, apelava sempre para o místico, argumentando que o Espirito Santo o revelara, naquele instante, que ainda havia algo a dizer... Era batata: não tinha quem sustentasse. Este é um exemplo do que o Direito Penal denomina de "coação moral irresistível". Até intenções de namoro ele autorizava ou desaprovava... Não tinha pai, mãe, marido ou mulher: era ele quem dava a última palavra na nossa vida. Todos dependiam dele e ele se realizava com isso.

Entendo oportuno o relato, porque sei que muitos ainda vivem situações como essa, em tantos lugares, em tantas comunidades... Sensibilizo-me com todos! Que a minha triste experiência seja, para você, também um aprendizado. Tenho a exata compreensão do que significa esta revelação e, por isso, disponibilizo o espaço deste blog para o exercício de eventual direito de resposta por qualquer daqueles que tenham relação direita com essa história. Garanto que o desagravo será publicado em forma de postagem.

Por fim, dirijo a minha mais sincera prece a todos os fundamentalistas:

Que descubram a beleza que há na vida. E no mundo também;
Que a fé não lhes retire a capacidade de pensar;
Que a humanidade seja mais valorizada que a santidade;
Que o sexo seja simplesmente bom;
Que possam se descobrir, e se tolerar também.

Que as más experiências não estraguem a capacidade de confiar nas pessoas;
Que ninguém os façam desacreditar de si mesmos;
Que realizar valha mais do que sonhar;
Que o amor próprio esteja à frente do amor ao próximo;
Que possam amar e ser, ainda mais, amados.

Que os povos todos entendam
O que a sabedoria diz
Que entre a tristeza dos extremos
Com alegria encontraremos
Um meio termo feliz.

Amém.

Artista por um dia...

Saindo de um lava-jato na hora do almoço, passo por um self-service com música ao vivo, tocando "bicho de sete cabeças" instrumental. Apaixonado que sou pela melodia, decidi parar e prestigiar o arranjo de perto. Canta uma, canta duas... Percebendo minha atenção, o músico pergunta se eu toco e me convida para dividir os trabalhos...

Eu juro que impus resistência. Eu juro. Mas, de um tempo pra cá, venho me tornando um "sem vergonha", no mais literal e inocente sentido da expressão. Isso porque, tenho avaliado, em cada situação, se devo ou não permitir que a timidez, o medo ou a vergonha determinem meu comportamento. Mesmo consciente de que se tratara de uma proposta no mínimo incomum, topei o desafio.

Expliquei ao cara que só canto no banheiro e toco razoavelmente (por sorte não disse "só toco no banheiro", já que induziria a um constrangedor e inoportuno duplo sentido, que em nada ajudaria naquele momento). Em resumo, cantei três músicas e na terceira ele ainda me entregou o violão... Foi uma experiência nova, apesar de já ter cantado na igreja, há vários anos.

Ninguém prestou atenção no paraíba, só no feijão carioca e sua banda, que exerciam poderosa sedução ao meio dia. Parecia não haver qualquer ruído, o que só serviu para me deixar ainda mais desinibido. Ouvia com nitidez minha desafinação a toda altura na caixa de som, como também os acordes mal posicionados nas cordas... Mas sabe de uma coisa? Quiz agradar mais a mim mesmo do que às pessoas... Como não sou profissional, posso me dar esse luxo. O prazer maior não estava em fazer bonito, mas simplesmente em fazer. Poder me expressar livre e publicamente, com a leveza da canção...

Deixo um recado: se algo prazeroso não vai causar mal a ninguém (nem a você mesmo) porque não fazê-lo? Posso dizer que não me arrependi.

O altruísmo organizacional

Pra falar bem a gente dá nome aos bois. O cara é Vicente.

Quem me conhece sabe da queixa que tenho com relação à falta de cooperação entre funcionários de uma mesma empresa. Tenho dito que nunca aprendi nada sozinho e tudo aprendi. Minha mãe me ensinou a andar, meu pai a correr, meu irmão a pedalar, minha avó a rezar e por aí vai. O que não tenho é vocação pra autodidata. O conhecimento é para ser partilhado, porque não pertence a ninguém (ou a todo mundo, como queira).
...
   - O que é qualquer coisa? Pergunta fulano.
   - Abra a enciclopédia ou pesquise no google. Responde sicrano.
...
Acho que não é bem por aí... Precisamos uns dos outros.

Vi uma colega do trabalho sofrer educadamente porque simplesmente não sabia o serviço, já que ninguém a ensinara. Seus pares estavam de férias e o abacaxi estava ali, para ser descascado. Procurou um e outro (inclusive eu) e cada um tinha as melhores desculpas... Na verdade, o egoísmo da vida também está nas organizações. Tenho o meu serviço, minha demanda, minhas responsabilidades, meus problemas, minhas prestações de contas ao chefe, sei lá o quê... De tudo nós temos, não é mesmo? De catarata a catapora...

Vicente também tinha tudo isso. Tinha catarata e catapora. Mas ele é daquelas pessoas iluminadas, que de vez em quando a gente vê por aí. Eu vi, meninos eu vi, Vicente parar dois ou três dias para ensinar àquela educada mulher. Ou melhor: para aprender junto com ela, porque ele também não sabia. Ser servidor é servir e ser exemplar é dar exemplo. Pois bem, posso dizer que conheço um servidor exemplar, e o nome dele é Vicente.

Na contramão das novas tendências, consciente de que ensinar aos colegas é, no final das contas, trabalhar menos, pensou grande e esqueceu o próprio umbigo, para nos lembrar que os outros também têm umbigos. Tão feios como o nosso.

Mega-Sena e o quase prêmio

Não jogo e não gosto de jogo. Nunca joguei porque tenho a mais tranquila e serena convicção de que não ganharei. “Fulano ganhou na loteria!”. Nem me incomodo... “Sicrano levou não sei quantos milhões pra casa!”. Não tô nem aí... Beltrano virou milionário do dia pra noite!”. Pouco me importa.

Mas uma coisa mexeu comigo como eu não esperava. São aqueles que quase ganharam. Marcaram as dezenas corretas, enfrentando uma probabilidade de 1 em 50 milhões (nada fácil), mas não registraram o jogo na lotérica! Não ganhar porque não acertou, para mim, é lógico. Mas não ganhar porque esqueceu ou desistiu de registrar a aposta na esquina é perturbador... O quase é que me mata!

Agora, deixo a poeta traduzir o drama do quase com a sensibilidade que não somos capazes de descrever:

O quase
(Sara Westphal)

Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase.

É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.

Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou.

Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cór, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados. Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz.

A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.

Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.

Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo.

De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.

Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar.

Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

A verdade ou a felicidade?

Conta a lenda que, quando Giordano Bruno estava prestes a morrer queimado em praça pública pela Inquisição, porque insistira em algumas descobertas científicas, uma senhora de idade, igrejeira, piedosa e pura, posicionou-se junto a ele, reforçando o coro pela sua condenação, com a veemência que só a fé pode emprestar. Neste momento crítico, o herege, diante da cena, voltasse para ela e diz somente isso: “santa ignorância...”. Digo lenda, porque devem ter criado o episódio, para fazer uma analogia com o Cristo, em uma de suas derradeiras preces: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem”.

História à parte, tenho pensado em como a fé, a religião, ou mesmo a ignorância, podem trazer tamanha convicção ao homem, a ponto de fazê-lo sentir-se plenamente realizado, apesar do engano. Quero dizer que encontramos pessoas que se dizem completamente felizes, por acreditarem em fatos, conceitos e idéias fantasiosas, os quais o mínimo de sensatez é capaz de desmascará-las.

Fica a pergunta: se a “felicidade” e a “verdade” fossem mutuamente excludentes, com qual das duas você ficaria? O que vale mais: uma feliz ilusão ou uma triste verdade? O que você deseja para si: o pleno conforto de uma alienação ou a decepção de uma lucidez? Você, para alcançar a verdade, sacrificaria a felicidade da qual desfruta? Você é adepto da tese “o que os olhos não vêem o coração não sente”? Ou prefere cavar com as próprias mãos o buraco de sua sepultura, para desterrar o que está obscuro? Decida. Pode parecer muito filosófico, mas somos obrigados a fazer escolhas como essas de vez em quando...

Lembro-me de quando me sentia de Jesus. Me sentia pleno, indescritivelmente pleno. Mas não podia ver novela (porque era criação do satanás); não podia ouvir músicas (porque era canção do satanás); não podia ler livros (porque era obra do satanás); não podia ir a um bar (porque era lugar do satanás); não podia criticar a igreja (por que era pensamento do satanás); não podia sentir desejo (porque era influência do satanás), não podia largar o terço (com medo do satanás). Não podia, não podia e não podia... Satanás, satanás e satanás...

Isso ainda acontece por aí, em muitos lugares...

Prefiro a lucidez. E você?

Feliz Ano Novo!

Cortar o tempo

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança, fazendo a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer indivíduo se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente.

Carlos Drummond de Andrade.