Seu Francisco e sua promessa...

Trabalho com atendimento ao público e numa dessas chegou seu Francisco. Um simpático senhor de idade, com o pescoço enfaixado e impossibilitado de falar, motivo pelo qual se comunicava escrevendo. Como me é de costume, enquanto o atendia, procurei conversar e conhecer um pouco de sua história, o que me deixou entusiasmado, devido a algumas coincidências.

Primeiramente ele disse (escreveu) que morou por anos na minha cidade natal (muito distante de onde trabalho, diga-se de passagem), fato que nos aproximou logo de cara. Além disso, ele também é torcedor do Auto Esporte de João Pessoa (o que, convenhamos, não é fácil de se encontrar por aí).



Outra coisa que me surpreendeu é que ele não apenas gosta de futebol, mas é locutor nas rádios! Não imaginei que aquele homem "mudo" utilizaria como seu principal instrumento justamente a voz. Disse que estava há alguns meses afastado, por conta da cirurgia na garganta, mas que em breve retornaria aos trabalhos e dedicaria um gol a mim no próximo jogo. Eu, que gosto do esporte, senti-me prestigiado.



Combinamos então de ele me avisar antecipadamente, para que eu possa acompanhar a partida pelo rádio e testemunhar, com a minha esposa, o cumprimento da promessa.



Na verdade, o que mais me impressionou foi a vontade contagiante de um idoso, cirurgiado, em voltar a trabalhar e ter sua vida social como antes. É um exemplo de cidadania bem sucedida, em detrimento a tantos outros que, por causa da idade, perdem o espaço no mercado de trabalho, são socialmente marginalizados e, não raro, por razões óbvias, amargam no fim da vida os horrores da depressão... Queria eu chegar a essa idade com o mesmo astral e a mesma força... Seria uma dádiva da vida.



No mais, espero o dia do jogo e que, principalmente, o placar não termine como comece.

Arte é arte e não se discute.


Bienal
(Zeca Baleiro e Zé Ramalho)

Desmaterializando a obra de arte do fim do milênio
Faço um quadro com moléculas de hidrogênio
Fios de pentelho de um velho armênio
Cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta

Meu conceito parece, à primeira vista,
Um barrococó figurativo neo-expressionista
Com pitadas de arte nouveau pós-surrealista
calcado da revalorização da natureza morta

Minha mãe certa vez disse-me um dia,
Vendo minha obra exposta na galeria,
"Meu filho, isso é mais estranho que o cu da jia
E muito mais feio que um hipopótamo insone"

Pra entender um trabalho tão moderno
É preciso ler o segundo caderno,
Calcular o produto bruto interno,
Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone,
Rodopiando na fúria do ciclone,
Reinvento o céu e o inferno

Minha mãe não entendeu o subtexto
Da arte desmaterializada no presente contexto
Reciclando o lixo lá do cesto
Chego a um resultado estético bacana

Com a graça de Deus e Basquiat
Nova York, me espere que eu vou já
Picharei com dendê de vatapá
Uma psicodélica baiana

Misturarei anáguas de viúva
Com tampinhas de pepsi e fanta uva
Um penico com água da última chuva,
Ampolas de injeção de penicilina

Desmaterializando a matéria
Com a arte pulsando na artéria
Boto fogo no gelo da Sibéria
Faço até cair neve em Teresina
Com o clarão do raio da silibrina
Desintegro o poder da bactéria

Crítica irreverente a 23ª Bienal Internacional
de São Paulo (1996), cujo tema era:
“A desmaterialização da arte no final do milênio”.

Fantástico!